Vaticano: Uma biografia não autorizada

 

VATICANO

UMA BIOGRAFIA NÃO AUTORIZADA

 

 

 

1. INTRODUÇÃO

 

Era 11 de fevereiro de 1929 e faltava meia hora para o meio-dia quando um Cadillac preto estacionou na frente do Palácio de Latrão, em Roma, e quando as portas do carro se abriram saiu dele o homem mais temido da Itália. Era Benito Mussolini, chefe do regime fascista que governava o país. Dentro do palácio, o quartel-general da Cúria Romana, o rosto administrativo da Igreja Católica, o papa Pio XI e seus funcionários mais gabaritados receberam o ditador com apertos de mão. Mussolini logo exibiu suas cartas: queria que a Igreja reconhecesse oficialmente o regime, como uma tentativa de neutralizar o adversário Partido Popular. 

A Igreja também foi clara ao falar de seus objetivos, exigindo a devolução do que havia perdido, no século XIX, durante o processo da unificação italiana, um Estado soberano. Por volta das 13 horas, Mussolini assinou o Tratado de Latrão, que conferia novamente ao papa um território independente dentro de Roma. Em troca, a Igreja reconheceria como legítimo o governo controlado pelo Duce.

 

Momento da assinatura do tratado

 

A rigor, foi nesse dia de inverno, na soturna companhia de um dos mais violentos tiranos do século XX, que nasceu o Estado do Vaticano como ele é hoje, o menor país independente do mundo e a última monarquia absolutista da Europa. 

Esse encontro em Latrão foi resultado de uma história muito mais longa, que se enraíza há 2.000 anos, no passado, tempo em que o papa era apenas o bispo de Roma, uma entre muitas lideranças de uma seita perseguida. Mais tarde, em seu auge, os pontífices se declaravam os “senhores do mundo” e desencadeavam guerras apenas com um sinal-da-cruz. 

Atualmente, o papado é considerado a mais longeva organização internacional da história. De onde veio, e onde foi parar, tanto poder? Para desvendar essa história é preciso retornar às origens do cristianismo, quando Roma virou centro de uma seita judaica nascida nas areias do Oriente Médio.

 

2. A PRIMEIRA IGREJA

 

Lendo o Evangelho de Mateus, vemos Jesus passeando pela Judeia, uma das províncias mais pobres do Império Romano, cujo domínio completo que se estendia da atual Inglaterra até o Iraque. De repente, o Messias olhou para um de Seus apóstolos, o pescador Simão, também conhecido como Pedro, e disse: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei minha Igreja. Eu te darei as chaves do reino do céu, e o que ligares na Terra será ligado nos céus.”  Para o dogma católico, essa passagem do Evangelho significa que Pedro foi escolhido como representante de Cristo na Terra, e mais: estava sendo escolhido como o primeiro Papa.

No início, o cristianismo era uma seita de judeus, e após a crucificação de Cristo os apóstolos se mantiveram pregando em Jerusalém. A ideia de que Jesus era o tão aguardado Messias, porém, não foi aceita entre os judeus. Pelo contrário: os apóstolos foram tão hostilizados, que se viram obrigados a se espalhar pelo Oriente Médio e pregar para novos ouvintes. Foi assim que o Messias passou a ser descrito como redentor de todos os homens e de todas as raças. 

O discurso colou. Comunidades chamadas igrejas (do latim “eclesia”, assembleia) pipocaram em cidades da Ásia, África e Europa, logo chegando ao centro político da época, Roma, onde a vida não era fácil para os cristãos, conhecidos pela sua recusa em adorarem aos deus romanos. 

Nos subúrbios de Roma foi construída uma arena chamada “Circo de Nero”, um lugar pantanoso, misterioso e meio sinistro, utilizado para corridas de carruagens, mas também para executar os “traidores” do império.  A esses eventos dava-se o nome de “Vaticanus”, provavelmente derivado de “Vaticus”, antiga aldeia etrusca que já existia naquele local. 

Segundo a tradição católica, Pedro teria viajado para Roma por volta do ano 42, onde também foi preso, e posteriormente crucificado e enterrado. Ainda segundo as tradições católicas, Pedro, como homem precavido que era, já havia escolhido um sucessor, caso algo lhe acontecesse, homem chamado de Lino, um cidadão romano convertido ao cristianismo, do qual quase nada se sabe além do nome. 

Assim a autoridade de Pedro teria sido transmitida, como continuaria sendo de geração em geração e de bispo em bispo, até chegar em Bento XVI, o 267º herdeiro de São Pedro.  A Igreja prefere registrar que são apenas 265 papas, riscando Estêvão da lista, por ter morrido três dias após sua posse, e também a Cristóvão, por ter tomado o cargo à força.

 

3. CONTROVÉRSIAS

 

Foi dessa forma que surgiu o primado de Roma, segundo o qual os bispos romanos são os representantes legítimos de Jesus, aqui na Terra.  Mas os fatos que sustentam esse dogma nunca foram uma unanimidade, pois não há nenhuma prova histórica da passagem de Pedro pela cidade de Roma. A Bíblia, pelo menos, nada registrou a respeito. 

Essas lendas sobre a viagem de Pedro e do seu martírio foram coletadas por volta do ano 312 d.C., na obra de um propagandista da Igreja, chamado Eusébio de Cesareia. Essa afirmação tem se tornado uma questão de honra para os papas, que em momento algum aceitam ideias contrárias.

Na década de 1930, por exemplo, escavações financiadas pelo Vaticano encontraram um antigo túmulo sob o altar da Basílica de São Pedro, que, de acordo com a tradição católica, foi erguida sobre a sepultura desse apóstolo. Junto aos ossos, os arqueólogos acharam símbolos cristãos, como peixes e cruzes, descoberta que não convencia aos especialistas. 

Segundo o Prof. e historiador André Chevitarese da UFRJ, um um dos maiores especialistas brasileiros no assunto, “Havia cemitérios no Vaticano muito antes de Cristo. O túmulo na basílica talvez nem seja cristão, pois os romanos pagãos costumavam se utilizar de símbolos de todas as religiões”. 

Como a maioria de seus companheiros, Chevitarese também duvida que Pedro fosse um líder absoluto, pois “O cristianismo antigo não tinha uma hierarquia rígida: o que havia era bispos independentes, com opiniões diversas sobre doutrina e fé.”   

Essa fase “democrática” chegou ao fim em 312 d.C., quando o imperador Constantino se converteu ao cristianismo, fazendo com que a religião perseguida passasse a ser a oficial em todo o Império Romano. Foi só a partir daí que a Igreja se tornou uma instituição hierárquica. 

Doações feitas pelos imperadores a foram enriquecendo, sendo que a instituição do celibato foi decidida nessa época, para impedir que tal fortuna se evaporasse entre os herdeiros. A proximidade do poder logo subiu à cabeça dos bispos romanos, que, até então, não eram mais nem menos respeitados que líderes de outras comunidades. 

No final do Século IV, os bispos de Roma adotaram o título de papa (“pai”, em grego), como sinal de que se consideravam chefes dos outros. Teria sido uma espécie de réplica espiritual ao cargo de imperador.

Imperador Constantino 

 

4. ESTADO PONTIFÍCIO

 

Estado Pontifício é o nome dado àquele território onde está edificado o Vaticano, espaço este inserido dentro dos perímetros de Roma, território estabelecido, tomado e depois retomado, de acordo com acontecimentos históricos.

Até o século VIII, os papas viviam em propriedades privadas, casas, palácios e campos que eram cultivados. A partir do ano 756, o rei franco Pepino transformou as regiões da Romagna, Emília, Bolonha, Orvieto e Ravena em território de propriedade para a Santa Sé, onde o papa reinaria sobre o Estado Pontifício.

No início da Renascença (século XVI), o Estado Pontifício atingiu seu tamanho máximo, quando o papa Júlio II conquistou e anexou ao Vaticano as regiões de Ferrara, Módena e Parma, quando uma inteligente política cultural e financeira transformou o Estado Pontifício num território riquíssimo, fazendo de Roma a capital intelectual do Ocidente, além de religiosa. 

Em 1789, após a Revolução Francesa (século XIX), os papas se tornaram governantes retrógados, passando a condenar tudo o que parecesse moderno e inovador, chegando a proibir a construção de ferrovias, pontes e iluminação a gás no Vaticano.  O Estado Pontifício chegou a ser considerado o mais atrasado da Europa, época em que a maior parte do reino acabou sendo conquistada pelo rei Vítor Emanuel, o aristocrata que unificou a Itália. As últimas terras ao redor de Roma foram tomadas em 1870.

 

 

5. COMO ESCOLHER UM PAPA

 

Hoje, a escolha de um novo papa é um dos rituais mais inflexíveis da Igreja. Mas até o século XI, a coisa era um verdadeiro pandemônio. Na Antiguidade e no início dos tempos medievais, as eleições eram feitas por aclamação, quando o povo e o clero se reuniam e gritavam o nome do sucessor. A coisa era um pouco confusa, e funcionava mais ou menos como nos moldes dos programas atuais de televisão, quando a plateia, com palmas, escolhe o melhor calouro.  Em 366, por exemplo, dois homens se declararam vencedores: Ursini e Dâmaso. O impasse se resolveu no tapa. Dâmaso, que depois seria canonizado, enviou mercenários para trucidar o rival Ursini dentro de uma igreja. 

Mais tarde, o direito de votar ficou limitado a padres de Roma e bispos das cidades vizinhas. O problema é que, entre os séculos VIII e XI, o clero era controlado por aristocratas que impunham sua vontade na base de subornos e ameaças. 

Quem colocou ordem na casa foi Gregório VII, em 1073, quando determinou que os papas deveriam ser eleitos exclusivamente pelos cardeais. Logo, surgiu um novo problema: intrigas e debates faziam a escolha demorar meses. Basta dizer que em 1268, após a morte de Clemente IV, as reuniões para sua sucessão se estenderam por três anos. Furiosos com a demora, os habitantes da cidade de Viterbo — onde estavam reunidos os clérigos — trancafiaram o grupo de eleitores dentro do palácio e os deixaram a pão e água até que chegassem a uma decisão.

O papa seguinte, Gregório X, tratou de prevenir futuras trapalhadas, estabelecendo regulamentos rígidos para as deliberações. A eleição, que antes era pública, se tornou secreta, mas manteve o costume de trancar os cardeais num local até que uma decisão fosse tomada. Foi daí que surgiu o título de “conclave” para essa reunião, extraído do latim “cum clavis”, ou seja “com chave”.

A partir do século XIX, a votação passou a ser realizada nas dependências da Capela Sistina, quando as cédulas de votação eram depositadas no altar, diante das pinturas de Michelangelo. Quando um candidato recebe um mínimo de dois terços dos votos, seu nome era eleito como o novo papa. As cédulas utilizadas na votação eram queimadas imediatamente numa Lareira Papal, cuja fumaça, nas chaminé, dá um sinal público de que o catolicismo tem um novo papa.

 

6. TRAPAÇA NA IDADE MÉDIA

 

Na penumbra de uma sala, um homem chamado Cristóforus, secretário do papa Estêvão II, ia escrevendo a sua obra-prima, iluminado por velas, e usando uma pena, tinta preta e folhas de papiro ou pergaminho. Não há certeza sobre a data (aproximadamente 750), e o local provavelmente teria sido o Palácio de Latrão.  A única certeza que se pode ter é sobre o conteúdo da obra: a famosa “Doação de Constantino”, a fraude mais bem-sucedida da história.

Para que se entenda o sentido do documento, temos que voltar no tempo, ao longo do século V, quando a parte ocidental do Império Romano foi invadida e devastada por tribos bárbaras, sendo Roma tomada em 476. Na confusão da guerra, o papado foi a única instituição organizada que conseguiu sobreviver, sendo que o papa Leão Magno entrou para o rol dos gênios da diplomacia por ter liderado o Vaticano nessa transição. 

 

Papa Leão Magno

 

Quando o rebuliço acabou, a Igreja era dona do mais poderoso dos monopólios — o conhecimento, pois os religiosos cristãos eram os únicos europeus letrados no início da Idade Média. Fornecendo conselheiros e legisladores para os reinos nascentes, a Igreja ganhou influência sobre os soberanos bárbaros, que começaram a se converter em 508. O primeiro monarca a se converter foi Clóvis, rei dos francos, que mandou batizar seus exércitos com tonéis de água benta.

O autor da obra “Doação de Constantino” provavelmente pertencia a uma classe especial de clérigos eruditos, equipes de falsários que, entre os séculos VI e IX, trabalhavam nos escritórios papais alterando e inventando documentos para fortalecer a posição dos bispos romanos. 

Esse documento era uma mistura de testemunho e testamento, supostamente assinado pelo Imperador Constantino em 315. O texto conta como o imperador foi milagrosamente curado da lepra, graças às preces do papa Silvestre. Em troca, teria transformado os papas em seus herdeiros legais, para sempre: “A eles deixo a coroa imperial e o governo de todas as regiões do Ocidente, de agora para sempre.” Ao longo da Idade Média, a “Doação” foi aceita como documento verídico e invocada por nada menos que dez papas para reivindicar poderes políticos. 

Muitos historiadores acreditam que a fraude foi usada pela primeira vez em 754, quando Estêvão II viajou para encontrar Pepino, rei dos francos. Estêvão procurava ajuda para transformar Roma e as terras vizinhas em território da Igreja, uma vez que nos dois séculos anteriores, a capital da cristandade havia sido saqueada e dominada por hérulos, godos, bizantinos e lombardos. 

"Pepino, que havia tomado o trono à força, tentava legitimar seu poder. O documento da “ Doação” foi apresentado pessoalmente pelo papa Estêvão II a Pepino, sendo que o rei franco aceitou o documento como prova da autoridade dos papas. Na sociedade iletrada da época, registros escritos despertavam respeito”, escreve o historiador americano Normam Frank Cantor em “The Civilization of the Middle Ages” (A Civilização das Idade Média).

Pode parecer estranho, mas os invasores bárbaros tinham uma admiração supersticiosa pelo seu antigo inimigo, o Imperador Romano, pois sonhavam em se igualar aos antigos imperadores, sendo Constantino uma referência entre eles. 

Depois de ter a coroa consagrada por Estêvão II, Pepino partiu para a Itália, expulsou os lombardos, que dominavam o país na época, e converteu um pedaço da Itália central em território independente para a Igreja. O coração do novo reino era a cidade de Roma e a área vizinha, que hoje forma o Vaticano. Todos os habitantes dessas regiões viraram súditos dos papas, passaram a lhes pagar impostos, sendo julgados e governados por eles.  Assim nasceu esse Estado Pontifício, que durou até 1870. 

 

7. DONOS DO MUNDO

 

Na virada do ano 1000, a Europa estava de joelhos. Pela espada dos reis católicos e pelas viagens de missionários, o cristianismo tinha unificado o caleidoscópio cultural do Ocidente numa nação espiritual. Na Ásia, porém, a autoridade do papa não era reconhecida. O patriarca de Constantinopla, atual Istambul, considerava-se tão importante quanto seu colega italiano. E ainda havia discordâncias em certos aspectos da liturgia romana, como o celibato e a missa em latim. A rixa explodiu em 1054, quando o papa Leão IX e o patriarca Cerulário excomungaram um ao outro e romperam relações. Os orientais formaram a Igreja Ortodoxa, enquanto que a Igreja Romana se declarou a única, eterna e católica (do grego “katholikos”, que significa “universal”)

O adversário seguinte dos papas surgiria na pessoa de um ex-aliado. Na época, a segurança do Estado Pontifício era mantida por tropas do Sacro Império Romano, fundado por Carlos Magno, filho de Pepino. Em troca da proteção, os imperadores exerciam uma pesada influência sobre a Igreja. Na prática, o líder da cristandade era um pau-mandado. 

Em 1073, surgiu um papa disposto a virar o jogo. Baixinho e de voz aguda, Gregório VII tinha um temperamento tinhoso, que lhe rendeu o apelido de “Santo Satanás”. Em um decreto famoso, determinou que os pontífices não só tinham o direito de legitimar soberanos como também podiam depô-los. E declarou que o papa não era só o líder da Igreja, mas o “senhor do mundo”. Isso enfureceu Henrique IV, soberano no Sacro Império Romano, que foi excomungado pelo papa Gregório VII. 

Segundo a historiadora Andréia Frazão, especialista em Igreja Medieval, “A excomunhão era uma ferramenta poderosa, pois o excomungado ficava proibido de frequentar missas e de receber sacramentos. Num tempo em que a religião estava entranhada na vida cotidiana, essa punição era terrivelmente pesada”. No inverno de 1077, Henrique IV resolveu pedir perdão às portas do castelo de Canossa, na Itália, onde o papa se hospedava. O “Santo Satanás” o obrigou a esperar três dias na rua, debaixo de neve, antes de recebê-lo e absolvê-lo. 

Nas mãos do implacável Gregório VII, o papado passou da defensiva para o ataque. Se antes precisava de proteção, agora se impunha com ameaças de excomunhão. Atualmente, os papas se declaram apenas “pastores espirituais”, mas naquela época eles funcionavam como soberanos políticos com sonhos de hegemonia, dispostos a conquistar o mundo pela cruz e pela espada. 

A maior prova de poder e ambição veio em 1095, quando Urbano II ordenou que os reis cristãos marchassem contra o Oriente Médio para “libertar” Jerusalém, governada por muçulmanos desde o século VII. Cerca de 25.000 peregrinos e guerreiros cristãos começaram a escrever uma das páginas mais sangrentas da história: as Cruzadas. Durante a tomada de Jerusalém, em 1099, quase todos os judeus e muçulmanos da cidade foram massacrados. Nos 200 anos seguintes, mais oito cruzadas marchariam sobre a Terra Santa.

Um século mais tarde (1198) o mundo passaria a conviver com o papa mais poderoso de todos os tempos, Inocêncio III. A Igreja era uma instituição milionária, uma potência militar que possuía um exército próprio. Os camponeses e os artesãos europeus eram obrigados a rechear os cofres da Igreja com um décimo de suas rendas anuais, o “dízimo eclesiástico”. 

A opulência papal começou a despertar ódio em algumas partes da Europa. Ainda na época de Inocêncio III surgiu no sul da França uma seita conhecida como “Catarismo”, negando a autoridade papal e o chamando de “Filho do demônio”. Inocêncio respondeu furiosamente ao desafio.  Em 1209, convocou uma guerra santa contra a “seita maldita”, quando aldeias foram queimadas e multidões foram chacinadas. Em 1233, para desintegrar o que sobrou do catarismo, Gregório IX, sucessor de Inocêncio III, criou a Santa Inquisição, tribunal de clérigos com o poder de acusar, julgar e condenar inimigos da Igreja.

 

7.1 Santa Inquisição

 

Em 1233, visando desintegrar o que havia sobrado do catarismo, Gregório IX, sucessor de Inocêncio III, criou a Santa Inquisição, tribunal de clérigos com o poder de acusar, julgar e condenar inimigos da Igreja.

Com o tempo, o Santo Ofício se espalhou por outros países e passou a perseguir e queimar não só os cátaros, mas todos aqueles que discordassem dos dogmas católicos, incluindo aí os judeus, os cientistas e os gays. As sociedades cristãs se tornaram perseguidoras e teocráticas. Por outro lado, a estabilidade alcançada na marra alavancou o desenvolvimento que transformaria a Europa na maior potência mundial. 

Os cronistas descreviam o mais terrível e bem-sucedido dos papas como um sujeito afável que gostava de contar piadas, mas também fiel à sua passagem favorita da Bíblia, em que diz a Jeremias: “Eu vos alcei por cima das nações e dos reinos para vencer e dominar, para destruir e conquistar.”

 

8. DECADÊNCIA COM ELEGÂNCIA

 

Entre os séculos XIII e XV, o sonho da hegemonia implodiu, quando os europeus foram definitivamente expulsos pelos sultões islâmicos, sendo que as Cruzadas acabaram em fiasco, em 1292. Dentro da Europa, os delírios absolutistas do Vaticano revoltaram até o clero. 

Em 1440, um sacerdote chamado Lorenzo Valla desmascarou finalmente a “Doação de Constantino”, mostrando os enormes erros históricos existentes no seu conteúdo. O principal deles, de acordo com os biógrafos antigos, provava que Constantino nunca houvera sido acometido de lepra.

Com o estremecimento do prestígio espiritual da Santa Sé, os reis começaram a peitar os papas e as excomunhões foram perdendo sua força moral. Enquanto isso, a educação deixava de ser privilégio do clero, pois as universidades pipocavam pela Europa, a ciência e a arte vicejavam: era o Renascimento chegando.

Apesar de esmorecer sua influência mundial, os papas ainda eram príncipes ricos e poderosos, em seu território. Aos poucos, como resultado, a moral ia deixando de ser um ponto forte da Igreja, o celibato passou a ser um detalhe insignificante e Roma mergulhou numa luxuriosa dolce vita. A carreira eclesiástica passou a ser buscada pelos oportunistas interessados na fortuna da Igreja. O exemplo máximo foi Rodrigo Borgia (Alexandre VI), eleito papa em 1492 graças à pesada propina distribuída aos eleitores (quatro malas carregadas de ouro). Bonitão e sedutor, Alexandre tinha duas amantes oficiais, dava festas de arromba no Palácio Apostólico e gerou a 7 filhos conhecidos, alguns presenteados com rentáveis cargos eclesiásticos.

Apesar dessa má fama, os papas da Renascença procuraram usar sua riqueza para deixar um legado cultural exuberante. Aí começaram a ser construídas as grandes bibliotecas, monumentos foram erguidos e a Cidade-Estado foi se transformando num tesouro para os olhos. 

O maioral entre os papas da arte foi Júlio II, que subiu ao poder em 1503, pai de três filhas. Ao invés de rezar missas de batina, ele preferia comandar exércitos, vestido em sua armadura de prata.  Nos intervalos entre as batalhas, o papa guerreiro patrocinou alguns dos maiores gênios da época, como os pintores Michelangelo e Rafael. Com a proteção e os salários pagos pelo Vaticano, esses artistas realizaram obras-primas como as incríveis pinturas no teto da Capela Sistina, de Michelangelo.

 

Capela Sistina

 

8.1 Reforma Protestante

 

Mas foi justamente a admirável extravagância de Júlio que detonou a pior crise na história da Igreja. Em 1505, o papa começou a reconstrução da Basílica de São Pedro, no Vaticano, que estava em ruínas. Para financiar as obras, autorizou todas as igrejas a vender “indulgências”, documentos que davam absolvição total dos pecados em troca de dinheiro, fato que enfureceu o monge alemão Martinho Lutero, que em 1517 publicou 95 teses denunciando a corrupção da Igreja. 

Começava a Reforma Protestante. Pouco depois, cristãos da Alemanha, da Holanda e da Europa Central já renegavam a autoridade do papa e a supremacia de Roma, mergulhando o continente em dois séculos de guerras religiosas.

 

9. MEDO DA MODERNIDADE

 

Mas a Igreja ainda teria dias piores pela frente.  No século XVIII, a Europa viu o florescimento do Iluminismo, movimento filosófico que colocava a razão e a ciência no centro do mundo, questionando o valor absoluto da fé e das tradições. Pensadores iluministas, como o francês Voltaire, defendiam que todos os homens nascem iguais e têm o direito de escolher a própria religião. 

Esse novo jeito de pensar passou dos intelectuais para as massas: em 1789, a Revolução Francesa guilhotinou privilégios (e padres) e desapropriou terras da monarquia e da Igreja.  Começava a acontecer no Ocidente uma separação litigiosa entre religião e Estado. De patrono das artes, o papado virou inimigo do progresso, entrando numa fase de pânico apocalíptico em relação a tudo o que cheirasse a modernidade. Condenava até a construção de ferrovias e iluminação a gás nas vias públicas.

O século XIX presencia o retorno de uma moralidade rígida no governo do Vaticano. O papa, que antes acumulava funções de político e soldado, passou a ser visto pelos fiéis como um santo vivo, casto e distante.

Em 1870, um movimento político nacionalista italiano realizou uma espécie de unificação da colcha de retalhos em que se encontrava o país. Entre as iniciativas radicais, retomaram as terras utilizadas pela Igreja (Estado Pontifício), anexando-as às propriedades do novo Estado. 

 

9.1 O Tratado de Latrão

 

O raiar do século XX assistiu a um cenário de pobreza e nulidade política a que se reduziu a Igreja. Os palácios do Vaticano estavam caindo aos pedaços, tinham esgotos entupidos e estavam invadidos pelos ratos. Foi nessa situação vexatória que Pio XI teve a oportunidade de assinar o controverso Tratado de Latrão, que incluía não apenas a devolução de um território soberano, mas também a doação de cerca de 90 milhões de dólares, o suficiente para tirar as contas do vermelho. 

Foi uma bela virada. Hoje, o Vaticano divulga lucros anuais de mais de 200 milhões de dólares, incluindo doações de dioceses e investimentos em empresas europeias.

Apesar das vantagem econômicas, o pacto com Mussolini foi terrível para a imagem do Vaticano. No fim da sua vida, Pio XI repensou tais alianças e escreveu uma encíclica condenando o antissemitismo, pois na época Hitler já tinha dado a largada para o Holocausto. Conta a história que faltavam dois dias para a publicação da encíclica quando Pio XI morreu, em 1939. 

Pio XII, seu sucessor, numa decisão desastrosa, arquivou a tal encíclica redentora. O novo papa via o regime nazista como um incômodo necessário na luta contra a maior das ameaças, que seria o comunismo. 

Hans Küng, um teólogo alemão, assim escreveu no seu livro “Igreja Católica”: “Mesmo após o início da 2ª Guerra Mundial, Pio XII, um papa eloquente, que fazia milhares de discursos sobre todos os assuntos possíveis, jamais denunciou os crimes nazistas. Adolf Hitler, que se dizia católico, nunca foi  excomungado”. 

 

 

9.2 Concílio Ecumênico Vaticano II

 

Em 1958, a morte de Pio XII deu início a um dos conclaves mais agitados do século XX. Para impedir a eleição de um conservador, cardeais progressistas votaram em peso em Angelo Roncalli (João XXIII), que parecia inofensivo, no limiar dos seus 80 anos. Porém, nem bem subiu ao poder, o velhinho bonachão surpreendeu até os mais liberais ao convocar o Concílio Ecumênico Vaticano II, tendo como objetivo, nas palavras do próprio papa, “atualizar” a Igreja. 

Os concílios (assembleias universais de bispos) ocorriam desde o início do cristianismo e eram um resquício de sua democracia inicial. Mas, desde a Idade Média, as decisões eram controladas ou censuradas pelo tacape do papa de plantão e pelos seus funcionários mais próximos. A proposta radical de João XXIII era afrouxar a hierarquia e dar mais poder de decisão à assembleia dos bispos reunidos.

O concilio trouxe mudanças antes inimagináveis. Entre outras coisas, reconheceu o direito de cada indivíduo escolher a própria religião, o que abriu canais de diálogo com outras crenças. A liturgia foi reformada e as missas passaram a ser rezadas nas línguas locais, e não mais em latim. Mas João XXIII morreu de câncer em 1963, deixando as decisões do concílio pela metade. Seu sucessor, Paulo VI, permitiu-se ser dominado pela ala conservadora, barrando a mais importante de todas as propostas: uma revisão do “Primado de Roma”, a tese que sustenta a autoridade suprema dos papas. 

“Houve tristeza e indignação entre os bispos reunidos. Mas ninguém protestou em público”, escreve Küng, um dos teólogos progressistas que participaram do concílio, e também um outro indignado tardio, cujos protestos só se tornaram públicos a partir de 1970, quando passou a publicar livros criticando a doutrina absolutista do Vaticano.

A luta pela alma da Igreja Católica continua. João Paulo II, que sempre foi um carismático e popular conservador, não tocou nas doutrinas controversas, como a condenação dos anticoncepcionais. As perspectivas para uma futura reforma do papado são nebulosas. 

Por volta de 2001, Hans Küng e outros teólogos liberais fizeram lobby por um Concílio Vaticano III, mas a ideia foi barrada pela Congregação para a Doutrina da Fé, novo nome para um velho conhecido: a Inquisição. Hoje, claro, ela não queima ninguém, mas ainda tem o poder de travar qualquer mudança nos dogmas e censurar teólogos moderninhos, como fez com o brasileiro Leonardo Boff, proibido de falar em público após criticar a postura centralizadora da Igreja. 

Na época em que o novo concílio foi recusado, o cabeça do Santo Ofício era um cardeal alemão, conhecido como intelectual brilhante. Amigo de Küng nos anos 60, ele simpatizava com a ala progressista, mas mudou de ideia. Afastou-se do antigo companheiro e se tornou porta-estandarte da facção conservadora. Hoje, anda ao lado de cardeais como Giacomo Biffi, que durante o sermão da Quaresma deste ano [2007] na Santa Sé, afirmou que a vinda do anticristo se aproxima, e que o enviado do Diabo estará disfarçado de “ecologista, pacifista ou ecumenista.”  O nome desse cardeal alemão, você já deve ter adivinhado: é Joseph Ratzinger (Bento XVI).

Joseph Ratzinger (Papa Bento XVI)

 

 

AUTOR DO ARTIGO

José Francisco Botelho

Revista SuperInteressante, Edição Maio/2007

 

 

 

 

SUGESTÕES PARA APROFUNDAMENTO

 

CAMACHO, Santiago. Biografia Não Autorizada do Vaticano, 2006.

KUNG, Hans. Igreja Católica, 2002.

DUFFY, Eamon. Santos e Pecadores: a história dos Papas. Editora Cosac & Naify, 1998.

 

OBSERVAÇÃO

O redator deste site é responsável pela nova roupagem dada ao artigo original, e também pela inserção da maioria das ilustrações. 


 

Por: José Francisco Botelho

Publicado em 30/03/2015

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